segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Diário de bordo: A Regata Aratu a Margojipe – 42 anos

De Dalzimar Tupinambá
Eram 10 horas quando chegamos. Estava sob observação médica. Afinal, passei dois dias de cama, fruto de uma gripe que, literalmente, me derrubou.
Ouço alguns fogos. A regata, ao que parecia, teria começado para os pequenos veleiros. A Marinha, cônscia dos seus deveres náuticos, compareceu para disciplinar o evento. Estávamos ainda no Angra dos Veleiros com o entusiasmo tomando conta de mim, a ingerir expectorantes, pílulas de analgésicos, anti-inflamatórios e relaxante muscular, em um agite antes de usar sem precedentes.
Expus a mim mesmo o meu problema de saúde, fiz com a consciência as ponderações que o meu estado debilitado recomendava e, com a irresponsabilidade própria de quem perde o juízo, debaixo de um vento frio que insistia em não cessar, vesti meu capote que não uso há mais de três anos e entrei no barco. Pronto, eu ia participar da regata, não concorrer nela, até porque a intenção de todos aqui é a de conviver com esse espetáculo único que, de tempos em tempos, orna de elegância e beleza a Baía de Todos os Santos.
Zarpamos às 10 horas e trinta minutos. A tripulação composta – Guto, Tidinho, Pet, com seu jovem filho Jonas Henrique, e eu –, deu-se início a elaboração da nossa rota, com o objetivo de cortar caminho para que ficássemos relativamente próximos das embarcações que concorrem na regata, mas sem concorrer com elas. O tempo não está bom, não há um céu de brigadeiro, nem um mar de almirante, mas dá para seguir em frente e presenciar o muticolorido que essa regata impõe, graças à criatividade e ao bom-gosto dos velejadores.
Atrás de nós estão a singrar 15 saveiros, com a imponência própria da sua rusticidade, em direção à baia de Aratu. Esses barcos, que só existem aqui e aqui são fabricados de forma rudimentar, mediante o uso do graminho – a alma do saveiro – por cerca de quatro séculos, guardam dentro de si uma história, aliás várias histórias de luta, de trabalho e de sobrevivência, que devem ser conservadas e difundidas. Diria mesmo que os saveiros são patrimônio cultural da Baia de Todos os Santos e tudo deve ser feito para preservá-los e reformá-los, a fim de que continuem a navegar e a prestar seus inestimáveis serviços ao povo do recôncavo. Essa cultura jamais pode cair no gosto acre do esquecimento, a pretexto de um progresso que não dignifica essa embarcação, ceifando-lhe a vida, mediante ostensiva ingratidão ao diuturno labor dos saveiros que une o paraguaçu ao atlântico.
À bombordo do nosso catamarã está a ilha de Itaparica. À boreste ou estibordo, visualizávamos os veleiros que então compuseram a primeira largada da regata. A distância era significativa. Ainda não podíamos identificar os velejadores, tampouco as manobras efetuadas para ganharem mais vento, assim que autorizados a partirem. Chovia, e, por isso mesmo, a dificuldade de visualização aumentava. Ao nosso lado, a bombordo, um catamarã abriu de inopino a vela balão. Lindíssima, com as cores da Bahia … e do Bahia, mas se deu mal. O uso da vela balão depende de condições favoráveis para tanto e, naquela hora, não era o caso. Teve de ser, de imediato, recolhida. O tempo não ajudava. Uma calmaria, a que se seguia chuva fina intermitente.
Eis que, por volta das 12 horas, autorizada a primeira largada, os veleiros deram início a sua faina daquele dia, não sem antes haverem singrado de um lado a outro, ensaiando suas possíveis manobras no curso da regata, examinando os cabos, elaborando a rota, tendo em vistas as bóias que têm que observar no decorrer do trajeto, escolhendo os tipos de velas, estudando os ventos, a fim de começarem na ponta. São imagens que mesmo ao longe dão gosto de se ver. Naquele torvelinho de fatos da natureza, que obviamente se alteram ao sabor dos ventos, em cada embarcação há uma azáfama, em que se misturam conceitos, teorias, práticas, comportamentos, atitudes e experiências. Há acertos e erros. Há sorte e azar. Há, enfim, vida. A vida dos que admiram e respeitam o mar, com todas suas vicissitudes, fonte do prazer e do receio. Um livro a ser lido várias vezes e, em cada uma delas, uma nova interpretação.
São 14 horas. Chegamos à Barra do Paraguaçu, local de beleza natural indescritível, que só vendo para entender. Diversas embarcações em volta da nossa. Estávamos, assim como elas, na intenção de encontrar um local seguro para atracar e ver o cortejo que já se aproximava, mas a dinâmica dos fatos impediu que se consumasse essa idéia.
Esse garboso encontro entre o rio e o mar é, a um só tempo, tranqüilo e grandioso. As águas não se fazem predominante, uma em relação à outra, antes se harmonizam formando um todo indivisível em que o doce e o sal passam a ditar o sabor agridoce sem que se divorciem das suas origens.
A visão agora, passados quarenta minutos, é simplesmente majestosa. Uma procissão diferente. Cada embarcação atua como um andor e as imagens que transportam são vivas, a dos tripulantes a labutarem e a admirarem a natureza, que a todos abraça com suas terras, árvores, mangues, múltiplos acidentes geográficos em uma interação de coisas distintas que faz com que se acredite na existência de um Superior que, se agora não dita as ordens, diante dessa humanidade que instituiu suas próprias regras, presenteia a quem por aqui passa com a excelência da sua criação.
Às 15h40 min. atracamos próximo ao cais de Maragojipe repleto de gente em sua volta. Várias embarcações ali estavam ancoradas, com o mesmo objetivo nosso de presenciar a chegada dos participantes da regata.
O maior espetáculo da Baia de Todos os Santos tem início com o seu fim: a chegada das embarcações à vela. São barcos distintos em estrutura, material, concepção, construção, acabamento, tecnologia, sem que essa diversidade cause qualquer constrangimento. Antes constituem elementos decisivos para o engrandecimento dessa democrática regata, a conferir um encanto difícil de descrever com fidelidade ao que se contempla e que nos eleva a um certo grau de felicidade íntima.
A comissão de frente se apresenta com as velas balão cheias, em um muticolorido que forma um arco-íris mais rico pela presença marcante das cores secundárias e terciárias, além dos diversos desenhos que ostentam. E, logo a seguir, observadas as respectivas categorias, surgem os retardatários que, nem por causa disso, deixam de merecer admiração. Para chegarem até aqui todos superaram condições adversas, deixaram para trás o marasmo do pequeno burguês, o sedentarismo indesculpável, a comodidade nada prazerosa. Choveu, fez sol, o vento mudou vezes sem conta de direção, além de ter deixado de ventar ou de ventar pouco. Além disso, uma vez transposta a Barra do Paraguaçu, os morros ali existentes “escondem” o vento, daí a perspicácia dos velejadores para suplantarem, naquele momento, no quente e na hora, esses infortúnios. Ele todos chegaram sãos, salvos e felizes. Afinal, e aqui faço o registro, ninguém quer morrer, embora a única certeza da vida seja exatamente a morte. Há até quem faça gracejo, afirmando não ter medo da morte, apenas não gostaria de estar presente quando ela aparecesse.
Depois de acompanhar a regata Aratu a Maragojipe, ter a imensa satisfação de desfrutar somente cenas lindíssimas, graciosas e até cinematográficas, de ver os velejadores a se empenharem em vencer o longo caminho, suplantarem até o imponderável, todos de forma solidária, felizes, alegres, corteses e libertos, só me resta afirmar algo que para mim soa sério, inclusive após profunda reflexão: se, como muitos, experimentei decepções e deverei experimentar outras; se fui vencido, quando não deveria, e isto acontecerá de novo; se fiquei cego, quando deveria ter enxergado; se chorei e sorri pelo mesmo fato, tudo isto não mais importa, passou, pois agora sinto imensa e incontida vontade de viver, reviver e sobreviver.
Quem depois de mim tiver a fortuna de participar dessa mesma aventura, confirmará que a vida, apesar de todos os contratempos que nela se intrometem de permeio, é o que vale a pena. E o encontro respeitoso com a natureza viva e multifacetária nos faz refletir, reencontrar o verdadeiro prazer da vida e voltar a sonhar, a seguir, navegar.
Vamos agora à festa em Maragojipe, em homenagem a São Bartolomeu, no candomblé sincretizado em Oxumaré.
Não fui. A gripe, a tosse, os espirros etc…. Fica para a próxima.

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